UMA DÉCADA DEPOIS DA CHACINA DA BAIXADA, PARENTES DAS 29 VÍTIMAS LUTAM PARA SEGUIR EM FRENTE.

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Toda vez que olha para o extenso gramado de casa, no bairro Cerâmica, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Luciene Silva se lembra do filho Raphael Silva Couto treinando capoeira. Há dez anos, não passa um dia – e nem sequer alguns minutos – sem que ela pense em seu menino. Então com 17 anos, Raphael foi a primeira vítima da Chacina da Baixada, na noite de 31 de março de 2005. Depois dele, 28 pessoas foram assassinadas por policiais militares, de forma aleatória, até Queimados.

Como todo ano, os familiares das vítimas farão uma caminhada nesta terça-feira, às 14h, partindo da concessionária Besouro Veículos, na Rodovia Presidente Dutra. Uma década depois, eles ainda lutam para sobreviver à tragédia.

– Meu filho estava de bicicleta com um amigo na Dutra quando foram atingidos. O meu antidepressivo foi me engajar numa ONG e ajudar outras mães na mesma situação, como a das irmãs de Belford Roxo mortas em frente à Riosampa, em 2014 – conta Luciene, de 49: – Falo para elas que buscar a punição dos culpados é justo, mas que não se pode viver pensando só nisso. Tem gente que fica tão focado que esquece de cuidar do resto da família.

Silvania Azevedo, de 37 anos, estava em casa, no bairro Ipiranga, em Queimados, quando ouviu os tiros que mataram o irmão, Renato Azevedo, de 30, em frente ao seu lava-jato. Para ela, o tempo não amenizou a dor:

– Perdemos os pais cedo. Eu era a mãe dele e ele era o meu pai. O tempo só me debilitou. Estou depressiva e cheguei a passar os últimos três meses em casa.

Entre 20h30m e 21h, os policiais mataram 17 pessoas em Nova Iguaçu, sendo dez no Bar Caíque, na Rua Gama, na Cerâmica. Em seguida, partiram para Queimados, onde executaram 12. As vítimas tinham entre 13 e 64 anos. Cledivaldo Humberto da Silva estava no Bar Caíque quando os tiros começaram. Ele empurrou a mulher para o chão, foi atingido na perna e desmaiou. Foi o único sobrevivente da chacina.

– É impossível esquecer. Sinto dor na perna quando o tempo esfria e, quando vejo um policial, meto o pé na mesma hora – desabafa Cledivaldo, aos 55 anos.

Quatro policiais seguem presos

Segundo as investigações, a troca de comando nos batalhões da Baixada e a linha-dura imposta pelo novo comandante do 15º BPM (Caxias), coronel Paulo César Lopes, foram o estopim para a chacina. Um dia antes, oito policiais reagiram à demissão de 60 agentes matando duas pessoas e jogando a cabeça de uma delas por cima do muro do batalhão. Flagrados por câmeras, eles foram presos.

Durante a tarde do dia 31, outros cinco PMs estavam de folga e passaram quatro horas bebendo num bar no Centro de Nova Iguaçu. Lá, decidiram o que fazer para desestabilizar o novo comando: entraram num Gol prata e mataram 29 pessoas.

Os policiais Marcos Siqueira, José Augusto Moreira Felipe, Carlos Jorge Carvalho e Julio Cesar Amaral foram condenados pelos 29 homicídios, pela tentativa de homicídio de Cledivaldo e por formação de quadrilha. Como foi embora antes, Fabiano Gonçalves foi condenado a sete anos por formação de quadrilha e já cumpriu a pena.

– Foram denunciados 11 policiais, mas cinco não foram levados a julgamento. Outro, o Gilmar Simão, foi assassinado após prestar depoimento. Ele estava colaborando com a gente – explica o promotor que atuou no caso, Marcelo Muniz: – As penas foram superiores a 540 anos. Sem dúvida, foi um dos trabalhos mais marcantes da minha carreira. Foi um fato fora dos padrões normais e precisava de uma resposta à altura. Isso inegavelmente muda as nossas vidas.

Muniz diz que sofre ameaças até hoje e, por isso, anda com seguranças. Ele garante, porém, que se acostumou com a situação.

Cotidiano de violência

Dez anos após a chacina, a Baixada não se livrou da rotina de violência. Em 2012, a região foi palco da morte de seis adolescentes na Chatuba, em Mesquita. No ano passado, mais cinco jovens foram assassinados no bairro Parque Paulista, em Duque de Caxias.

Acostumado a lidar com familiares de vítimas de crimes, Adriano Dias, fundador da ONG ComCausa, vê uma mudança no perfil da violência na Baixada:

– Até 2007, predominava a violência estatal: da polícia e dos grupos de extermínio. Depois, com a expansão das UPPs no Rio, houve a migração do tráfico para a região.

Já para o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análises de Violência da Uerj, os grupos de extermínio continuam atuantes.

– Eles estão na polícia e até mesmo nas câmaras de vereadores. Houve avanços com a criação da Divisão de Homicídios da Baixada, mas ainda estamos longe de resolver o problema da violência – afirma Cano.

Fonte: Extra

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